Um conto de Natal

Elisa Guimarães
4 min readDec 22, 2020

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Avisos de gatilhos: pandemia, violência

Finalmente havia chegado a melhor época do ano. Mal podia esperar, ainda mais porque 2020 havia sido um ano particularmente apetitoso. Os últimos três ou quatro haviam sido bons… não tinha do que reclamar. Deu para hibernar, relativamente, sem acordar no meio com a barriga roncando. O que, para ele, era uma excelente notícia.

Desde as Guerras Mundiais não via um banquete sendo preparado com tanto esmero. Ainda por cima com shoppings e bares lotados — doença, egoísmo e hipocrisia espalhavam-se mais rápido que ervas daninhas depois da chuva. Quem sabe até pudesse ter indigestão por comer demais. Que delícia! Séculos sem essa sensação de peso tão gostosa.

Ainda era novembro… Estava quase lá. Mesmo com semanas separando-o de seu merecido banquete, podia sentir o clima favorável. Todos engordando suas crises e faltas de perspectiva, como bons leitões natalinos.

Agora era uma questão de esperar e caprichar na roupa.

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Na véspera de Natal, as luzes brilhavam multicoloridas e as ruas estavam semi desertas. Um ou outro transeunte passava correndo, arrumando a máscara no rosto (ou no queixo). Todos tão apressados. Enquanto isso, ele ouvia as discussões, brindes e risadas forçadas. A tentativa vã de manter uma normalidade que não existia.

Passeava pela rua sem pressa nenhuma, respirando fundo o doce aroma de desespero. Sorvendo aos poucos todos os medos das pessoas enclausuradas em suas casas, alimentando-se da culpa daqueles que suspeitavam ter contaminado parentes e amigos. A ansiedade e incerteza eram deliciosos petiscos. Onde quer que fosse, eram servidos em bandejas de prata.

Dessa vez, no entanto, queria algo especial além da fartura. Afinal, era o fechamento de uma década. A primeira da “Nova Idade das Trevas”, como ele e seus companheiros gostavam de chamar. Ainda por cima, o primeiro e glorioso ano da imensa pandemia que deixava Peste e Poluição eriçados. Por isso, decidira que dessa vez, além de só absorver as energias, comeria à moda antiga.

Deixou seus passos lhe guiarem até uma grande construção, toda enfeitada e iluminada. Do outro lado das portas duplas escapavam gritos alucinados e uma cantoria desafinada. Decidiu entrar, com o apetite renovado pela hipocrisia no ar.

Ao pisar no tapete vermelho posto entre as fileiras de bancos e cadeiras, sentiu um arrepio prazeroso percorrer sua espinha. O deleite veio intenso quando notou olhares irritados, sussurros e dedos apontando em sua direção. Todos sem máscara, sentados juntos como frangos em uma granja industrial.

“Vejam… um homem vestido de Papai Noel. Que audácia!”

A cada passo que dava em direção ao sujeito com um magnífico terno azul claro sob medida e um reluzente Rolex no pulso, sentia-se melhor, maior, mais poderoso.

Notou, ao chegar perto do palco, que várias pessoas bem vestidas e arrumadas tinham em suas mãos cestas, máquinas de cartão de crédito e garrafas de água com rótulos rebuscados onde era possível ler “Cura Ungida”. Seu sorriso se alargou, passando além de sua barba branca bem escovada.

Sua figura chamou atenção daquele que conduzia uma pregação, e assim foi convidado a subir no palco com o homem. Prontamente, um brutamontes de terno preto e óculos escuros o ajudou a galgar os degraus.

— Você, pecador! Veio até nós em nome de Jesus para renunciar esses prazeres mundanos e os falsos ídolos, como Papai Noel e essas baboseiras do demônio?

— Sim — respondeu o recém-chegado — Eu renuncio! Renuncio a tudo, em troca da sua bênção. Chegue mais perto para me ungir e o milagre se fará na minha vida!

O pastor se aproximou com um olhar de triunfo estampado no seu rosto bem maquiado e sem barba, sem nem sinal de um dia de uso de máscara sequer. Ergueu a mão para tocar a testa do Papai Noel que já removia o gorro vermelho e estava parcialmente ajoelhado.

Os gritos de terror ecoaram pelo templo gigantesco quando o pastor viu seu Rolex ser engolido pela bocarra gigantesca repleta e dentes afiados do bom velhinho. O sangue do pastor escorria e se misturava com o vermelho vivo dos trajes natalinos, enquanto ele mastigava ruidosamente a mão do outro. O som de ossos sendo triturados ficava ainda pior ao ser amplificado pelos microfones do palco.

Alguns fiéis desmaiaram. Outros tentaram fugir, achando as portas do templo fechadas de modo intransponível. Uns pisavam sobre os outros. Gritos de pânico espiralavam em direção ao teto no alto. Alguns tiros foram disparados. Mas nada disso abalava o bom velhinho, que arrancava nacos sangrentos de carne do pregador berrando a plenos pulmões, e os mastigava com gosto. Estava cada vez maior, olhos mais desvairados.

Ao terminar o primeiro prato, limpou as mãos ensanguentadas na roupa molhada de sangue e dirigiu-se calmamente ao microfone mais próximo.

— Se desesperem, rebelem, gritem, orem, xinguem… tanto faz. Esta noite, todos vocês serão a minha ceia festiva. Desejo a todos um feliz Natal!

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Elisa Guimarães

Revisora, preparadora de texto, editora, tradutora freelancer, mãe de uma criaturinha fofa, esposa de um artista talentoso e ávida leitora.