Sombras à luz da lua

Elisa Guimarães
6 min readAug 13, 2020

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Andava em círculos dentro da pequena sala de sua casa. Seu reflexo bruxuleante iluminado pelas velas e pelos raios de luar infiltrando-se pela janela. Sua imagem passava como um fantasma diante do espelho de cristal da penteadeira. A agitação frenética contrastava com a placidez simples do cajado encostado perto da porta de entrada, esquecido em seu lugar habitual. Era uma casa simples, com poucos pertences, mas todos em perfeita ordem e muito limpa.

Cael era uma pessoa detalhista e sempre racional, por isso tanta agitação parecia foram de lugar essa noite. Mas não podia evitar, essa seria a noite decisiva, depois de meses de planejamento e de incontáveis detalhes, deixaria para sempre vila de seus ancestrais para viver ao lado de seu amado. Mesmo com a certeza em seu coração de que estava agindo corretamente, sua mente disparava hipóteses absurdas sem parar. “Por que ele estava demorando? Estaria ferido? E se fossem emboscados? Qual feitiço usaria?”, pensou olhando ansiosamente para o cajado mais uma vez.

Não era a primeira vez que partia de seu lar. Ao longo dos anos isso tornou-se uma rotina de idas e vindas, como diplomata e emissária de seu orgulhoso povo.

Tentando acalmar os nervos, sentou-se na poltrona diante da penteadeira e começou a soltar o cabelo de suas tranças e a desembaraçá-lo. À medida que corria os dedos por seus longos cabelos cor de mel, lembranças de seus doces momentos ao lado de Elrohir começaram a surgir.

O sorriso iluminou o rosto de seu reflexo ao lembrar a primeira vez que falara a sós com o Sucessor do Orador dos Sonhos. Seus olhos cinzentos gentis brilhando ao sorrir para ela no jardim, cercados de flores. Parecia um sonho bom tê-lo em sua vida.

E agora, lá estava ela, a maga tão insensível e distante, de acordo com alguns, tremendo como uma adolescente a espera de seu amor. O homem que fora prometido para a princesa de Além da Floresta dos Cervos, mas que escolheu fugir com ela e viver ao seu lado.

Ainda estava perdida em pensamentos, quando o barulho do seu cajado caindo no chão a despertou de seus devaneios. O leve reflexo de metal preso às costas sobressaindo do seu cinto dele ao passar pela porta e tropeçar no cajado.

- Oh, Lua de Prata! Você me assustou! A lua já está alta, devemos partir logo — disse sorrindo para o reflexo dele no espelho.

O jovem elfo se aproximou com um embrulho em suas mãos, e um sorriso nos lábios.

- Trouxe algo para você, minha rosa silvestre.

Ansiosa, Cael desembrulhou o presente: um belíssimo pente de prata com finos adornos em forma de flores e hera brilhava sob a luz do luar. Era o pente mais belo que já tinha visto na vida, o símbolo de sua união. Nada poderia ser mais perfeito, a seus olhos.

- Permita-me colocar em seus cabelos e selar por vez nosso compromisso já sacramentado em nossos corações — diz o amante abraçando seus ombros e beijando seu rosto de leve.

Pode ver reflexo bruxuleante dos dois no espelho: ela sorrindo, as faces coradas pela felicidade. Mas algo estava diferente, estranho com ele. Seus olhos… Estavam duros e escurecidos, onde estava a sua tão conhecida e amada gentileza?

Enquanto ele prende o pente nos cabelos dela com uma mão, a outra segura firme o cabo do punhal e os reflexos difusos sorriem.

A lâmina aguçada perfurou suas costas, roubando o ar de seus pulmões com a dor e o choque. Sentia o sangue quente e viscoso molhar seu vestido, a dor lancinante deixando seus sentidos turvos. Mas nada disso se comparava a dor da sua decepção pela traição.

Desesperada tentou fugir da lâmina cruel de seu agressor, caindo no chão com um baque surdo e derrubando consigo o espelho de cristal da penteadeira, que se estilhaçou em grandes pedaços fazendo um barulho alto e estridente. No chão, os cacos aguçados começaram a se misturar com o sangue viscoso da ferida aberta. O luar refletia estranhamente nos cacos com uma sombra carmesim cobrindo a claridade.

Instintivamente, Cael vasculhou com os olhos o chão em busca de seu cajado. Que jazia impassível no chão, perto da porta, a metros de distância.

Elrohir se aproximou da moça ferida e amedrontada. Como um animal selvagem que brincava com sua presa antes de finalmente devorá-la. Os lábios dele se torceram em um meio sorriso irônico. A expressão gelada de indiferença.

- Agora me diga onde você escondeu o livro de feitiços que você recuperou das ruínas. Não se faça de desentendida, todo mundo sabe da sua descoberta. Eu não quero ter o trabalho de procurar nessas suas tralhas. Vamos, rosa silvestre, um último favor.

Engasgando-se com o sangue, subindo em sua garganta misturado com a bile, Calen reuniu toda sua incredulidade.

- Por quê? Por que você fez isso comigo? — sussurrou em um som estrangulado e cheio de tristeza.

- Ora, você acha que eu deixaria o meu casamento por você? Não. Eu vou deixar meu lugar por algo mais importante: poder. Poder e conhecimento, sua tola. Duas coisas que você tinha ao alcance de suas mãos, mas preferiu se dedicar a tolices típicas de uma pessoa fraca, sem ambições e que confraterniza com inferiores. Sabe por que meu pai escolheu você para as expedições? Se você morresse não ia fazer nenhuma falta, e como não tinha nenhum orgulho estava à altura de se rebaixar para aqueles seres inferiores de Além da Floresta. — respondeu com escárnio na voz.

Tentava lembrar de algum feitiço em agonia. Qualquer um. A silhueta escura e imprecisa dele, se aproximando cada vez mais, com o som do espelho se partindo sob suas botas.

Um feitiço! Só um feitiço! Qualquer um! Mas nada lhe ocorria. Só conseguia olhar para seu cajado imóvel jogado no chão com os olhos cheios de lágrimas. A dor turvando seus sentidos e mente.

- Ninguém vai ajudá-la. Eu não tenho nenhum prazer em especial de fazer isso com você, principalmente depois da diversão que me proporcionou. Você não é uma amante ruim, então — disse puxando seus longos cabelos e aproximando o rosto do seu — que tal falar de vez onde está o meu livro?

Lágrimas grossas rolavam em suas faces enquanto se sentia cada vez mais fraca e tonta, sua vida se esvaindo a cada momento. Como fora tola!

Com um suspiro irritado, ele girou mais uma vez a lâmina em sua mão e a cravou novamente, dessa vez no peito dela. Penetrando a carne, raspando os ossos, a lâmina encostando no coração da elfa.

Nesse momento nefasto, todo seu ódio por ter sido enganada se inflamou, a dor da traição e a vergonha por sua ingenuidade queimaram nas veias frias da maga moribunda, o âmago de sua alma enche-se de revolta. De dentro de seu peito despedaçado e sangrento surgiu um lamento. O som de agudo de uma flauta, baixo quase inaudível, subiu em um crescendo, aumentando de volume e força. Dando lugar ao grito de uma alma despedaçada, o brado de um ser enlouquecido de dor e ódio. O som preencheu a noite, alto e infinito, acordando todos em quilômetros. Arrebentou os tímpanos dos mais próximos e gelou os ossos dos mais corajosos -aquele som terrível viaja através do ar, cobrindo grandes distâncias, levando pesadelos e mau agouro para as cidades dos homens além das dos elfos.

Há quilômetros de sua origem, a princesa de Além da Floresta dos Cervos, prometida do assassino, foi despertada de seu sono pelo frio dos dedos da morte tocando o seu rosto.

Pela manhã o corpo da maga Cael foi encontrado ensanguentado e apunhalado terrivelmente, o Sucessor do Orador dos Sonhos estava ao seu lado, banhado em sangue, murmurando incoerentemente, todos os seus negros cabelos, brancos como a lua cheia, seu rosto retorcido no mais puro terror.

Ela foi enterrada em um local simples e sem nenhum tipo de deferência, o pente prateado ainda adornando seus cabelos cor de mel. E a partir desse dia, nunca mais haveria paz naquele lugar. Seus gritos de desespero e rancor podiam ser ouvidos todas as noites de lua cheia de céu limpo.

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Elisa Guimarães

Revisora, preparadora de texto, editora, tradutora freelancer, mãe de uma criaturinha fofa, esposa de um artista talentoso e ávida leitora.