Elisa Guimarães
3 min readMay 16, 2019

Ela sentia a pele inteira arder e seus olhos estavam cheios de lágrimas. Precisava parar isso! Precisava impedir o vulcão!

Não era exatamente um vulcão, na acepção da palavra, como desses que se vê em fotos cuspindo lava e rochas a centenas de metros. Não, senhor! Esse vulcão o era por falta de um termo mais adequado para descrevê-lo, não havia qualquer língua com vocabulário suficiente para descrever aquilo. Naquele quarto imundo, num hotel barato na pior parte da vizinhança da Cracolândia havia um vulcão de gelo.

A luz pálida do tablet havia se transformado em outra coisa, algo doentio e gelado, tão frio que poderia congelar qualquer coisa que ousasse tocá-lo. E a partir daquele pequeno objeto tão comum essa luz mórbida se esgueirava e desenrolava lentamente, a luz comportava-se como óleo, era isso: vicoso e gelado, descendo lentamente pelas mãos e braços de Pedro. Ou melhor, o que um dia fora Pedro. A pele dele se esticava além de sua capacidade, parecia tentar fugir do toque do gelo oleoso, deixando músculos, tendões e ossos expostos. No rosto dele, os óculos quebrados reluziam como cristais de quartzo espalhando a luz por todo o ambiente enfumaçado. Projetando sombras macabras e disformes nas paredes que se retorciam. O que um dia foi a boca do rapaz se rasgava, a pele esticada mal contendo a mandíbula descarnada que se abria em um sorriso mortal e necrótico. Dos dedos dele pareciam se alongar garras brancas como ossos polidos, pingando sangue que gotejava negro e ácido, e se acomodava no chão retorcido.

Naquele lugar não havia mais nada. Nem Lógica, nem Biologia, nem Física. O que havia, e em grande quantidade, era morte, dor e loucura que se esgueirava pelos cantos e vazava pelas frestas da porta velha e rachada. Gritos ecoavam distantes, tão baixos que pareciam sussurros, mas que mesmo assim faziam as paredes vibrarem com seu poder.

A luz se desenrolava preguiçosa, tomando a forma de tentáculos, se esticando e desenrolando sobre os corpos daqueles que haviam sido seus companheiros de estudo e de jornada. Agora restavam de pé apenas o que fora Pedro momentos atrás e o que, por enquanto, ainda era Ana. Ela tentava se aproximar da fonte de tudo, se jogasse o tablet no chão talvez isso parasse. Sabia que não deviam ter feito o ritual, ainda não estavam prontos. Ou quem sabe teriam errado no entalhe de alguma runa. Não é tão fácil entalhar pele e músculos como se vê no cinema.

Mas nada disso importava mais, todos estavam mortos e era seu dever fechar o vulcão e assim garantir que o mundo permanecesse como estava. Eles haviam sido levianos, achavam que podiam brincar com poderes além dessa dimensão e continuariam suas vidas com os louros de gênios. A ambição era enorme, e o atalho era tão tentador. Apenas a um ritual de distância estava a genialidade e todo o conhecimento. Simples e seguro. Por que não seria? Só precisavam do livro certo, do sacrifício correto, as palavras ditas na ordem adequada e zás: gênios com a cura do câncer, como um passe de mágica.

Mas a realidade nem sempre corresponde ao planejamento. E essa máxima foi demonstrada com virulência.

Onde os tentáculos de luz tocavam, entrava em chamas, aquecendo com o frio e provocando a fumaça sufocante que obscurecia tudo e queimava o próprio ar. Deixando tudo mais quente e insuportável. A pele dela começou a se encher de bolhas terríveis que rasgavam ao menor movimento. Sua língua estava fustigada e não conseguia gritar mais. Estava agora há apenas dois passos da fonte, de Pedro, de tudo e de Nada.

Quando ele olhou nos olhos dela, e ela viu, e ao ver finalmente entendeu! Ela entendeu o vazio, a morte, a dor e a loucura. Aquilo não era nada. Ela não era nada. A Fome! A Fome era tudo e todos e o vazio.

Então ela pôde finalmente compreender. E riu diante da revelação. Era parte dele agora. Mais uma de suas múltiplas faces. O sacrifício fora aceito e ela estava recebendo sua paga. Agora era parte dele. Um de seus muitos eus e ninguém. Eram Tulzscha.

Elisa Guimarães

Revisora, preparadora de texto, editora, tradutora freelancer, mãe de uma criaturinha fofa, esposa de um artista talentoso e ávida leitora.