Esperanças de Reveillon

Elisa Guimarães
2 min readDec 31, 2020

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Tava quase na hora! Mal podia esperar!

O silêncio do modesto apartamento só era quebrado pelo som baixo da tevê, ligada em algum programa ao vivo, desses com shows musicais. A penumbra em que mergulhava combinava com seu humor, igualmente sombrio. Seus olhos insones e cheios de olheiras não desviavam da tela. Na mão, um controle remoto e um copo de vidro, daqueles de requeijão, cheio de cachaça e com rodelas de limão. Ao lado, no sofá gasto, o gato dormia silenciosamente.

Que ano merda tinha sido esse.

A renda caiu, um dos clientes mais polpudos fechou as portas. O pai, empacado como um burro e negacionista até o fim, morreu de complicações de covid no meio do ano. O relacionamento acabou porque “à distância assim, estando na mesma cidade, não dá”. Rompeu relações com a maioria da família porque ninguém levava o isolamento social a sério. Foi uma sucessão de pequenas tragédias pessoais. Um golpe atrás do outro.

Acompanhar as notícias só aumentava sua ansiedade e paranoia. Passou a deixar tudo sintonizado nos canais de notícias enquanto trabalhava. Dormia pouco. Tinha falta de ar. “Será covid?”, era seu pensamento mais frequente. Teve um colapso nervoso sério. Conseguiu melhorar com ajuda da terapia à distância, medicação e apoio dos novos amigos virtuais. A família negacionista continuava a mugir pelos grupos do zap.

Grupos dos quais, aliás, saiu. Graças a Deus!

O início de dezembro começou a trazer um estado de agitação e euforia com o final do ano. Finalmente toda essa merda, toda a dificuldade e dor, iam ficar pra trás.

Com os olhos vidrados, acompanhava a contagem regressiva.

Dez.

Nove.

Oito.

Sete.

Seis.

Cinco.

Quatro.

Três.

Dois.

Um.

— 2020 ACABOU! SEU PUTO! VOCÊ VAI FICAR PRA TRÁS! — o grito veio fácil.

Em letras garrafais e brilhantes, na tela da televisão, brilhavam as palavras: Feliz 2020!

Sem entender direito, piscou devagar duas vezes e olhou ao seu redor. Estava na casa do pai, com a família reunida gritando.

Sua cara-metade segurou-lhe a mão ternamente e disse, ao pé do ouvido:

— Feliz 2020, meu amor!

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Elisa Guimarães

Revisora, preparadora de texto, editora, tradutora freelancer, mãe de uma criaturinha fofa, esposa de um artista talentoso e ávida leitora.