Dia na praia

Elisa Guimarães
4 min readSep 30, 2020

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Água pegajosa e avermelhada, quebrava em ondas baixas, perfeita para um relaxante banho bem quentinho. A areia granulada se misturava lindamente com pedaços pequenos de metal, bem afiado, como pequenas agulhas e farpas. O dia estava lindo! A escuridão completa e o barulho de coisas rastejando. Milhares de coisas rastejando. Patinhas articuladas, antenas balançando e ferrões ou quelíceras estalando ao se chocar uma contra a outra.

Clima perfeito para diversão em família na praia!

A mulher arrumou o lenço de seda sobre seus cabelos ralos cuidadosamente enrolados sobre os pontos em que o crânio branco e descarnando aparecia. Deu um suspiro irritado. Havia esquecido o alicate de corte em casa, todas as vezes que ia à praia esquecia alguma coisa. Mesmo assim, conseguiu tirar um pedaço de arame farpado do carretel, manuseando o alicate universal sem muita habilidade com seus dedos frouxos e sem pele. Chamou seu filho menor mais uma vez. O som era um gorgolejo ensanguentado e urgente.

A criança largou o pedaço de fêmur contrariada e saiu se arrastando para perto da mãe, detestava ter que prender o globo ocular no lugar. Era chato e demorado. E os outros meninos já tinham sentido o cheiro de sangue humano, se não se apressasse começariam a caçada sem ele.

O pai ergueu os olhos de seu jornal do dia, e reparou nos dedos sujos de sangue, esse era o inconveniente dos jornais de pele. Outros já haviam se adaptado às novas tecnologias com telas finíssimas de retina tratada, mas não ele, era uma criatura apegada às tradições. Se esticou um pouco para ficar de olho na cria mais velha. Ela estava a alguns passos, entretida com colegas, desenterrando um cachorro zumbi que se derramava em vermes brancos e fervilhantes por todos os lados.

Hoje realmente seria um dia bom! Paz e relaxamento com a família. Tinha até podido polir os cascos antes de sair de casa. Um dia agradável, com certeza!

Os olhos dele grudados na mulher, passeando as belas saboneteiras dela, se projetando brancas em contraste contra o resto da pele arroxeada. O dorso dela destacado na roupa de banho preta, pontos brancos ósseos se projetando na pele roxa e embolorada. O perfil lindamente esculpido com o pedaço de nariz que pendia por um fio de pele, o globo ocular preso com habilidade com um arame farpado bem ajustado, uma das articulações do maxilar afrouxando enquanto ela executava a tarefa com o alicate, a pele macilenta e azulada da testa enrugava de leve com a concentração. Hoje ela estava mesmo uma visão! Sorriu para a esposa e deu um sorriso para ela, mostrando todos os dentes afiados como navalhas. Ela deu a última volta no arame farpado e se arrastou para perto do marido, gorgolejando o quanto ele estava garboso.

Ele tomou a mão meio descarnada dela entre as garras e raspou os dentes na pele descorada e pútrida. Deu uma sequência de pequenos beijos, subindo pelo braço e indo até o pescoço dela. Se o dia estava bom, a noite prometia…

Subitamente o agradável murmurar das quelíceras e patas foi interrompido por vozes irritantes. Cânticos familiares espalhavam-se ao redor deles. As dissonantes vozes humanas incomodavam com sua harmonia, começando baixo e subindo em um crescendo. Um ar desagradável e quente, quase vivo começou a soprar agitando a areia e os pedaços de metal.

Alarmada a mãe levantou-se de supetão deixando cair o lenço dos cabelos e o alicate que ainda estava na mão, e pôs-se a gorgolejar alto chamando os filhos. O pai começou a juntar as coisas que trouxeram, em sua pressa deixando até mesmo a página do jornal ser levada pelo turbilhão de vento, que a levou para sabe-se lá aonde.

Todos que estavam na praia começaram a se agitar, recolhendo suas coisas o mais rápido possível para deixar o local. Ninguém queria estar lá quando o tecido dimensional se esgarçasse. As crianças se arrastavam e claudicavam o mais rápido que podiam em direção aos pais preocupados.

Merda! O dia estava tão bom!

Uma fenda multicolorida se abriu no céu, bem acima das cabeças dos campistas apressados, deixando ver através do rasgão um lugar escuro, iluminado por luz de velas. Figuras humanas nuas, com suas arrepiantes peles inteiras e ossos guardados dentro da carne. Estavam pintadas com letras de um alfabeto que eles mesmos não conheciam. Ignorantes humanos! Hunft!

Os cânticos ficaram mais altos e incessantes. Ferindo os ouvidos, quando um glifo surgiu entre os chifres do pai que lançou um pedido de desculpas com os olhos para a já irritada esposa que estava com os olhos mortiços fixos nele.

Uma luz brilhante e avermelhada cegou a todos.

Quando voltou a enxergar estava cercado de humanos ridículos que mal sabem articular palavras dando ordens e demandando coisas ridículas. O de sempre: dinheiro, poder, sexo, morte aos inimigos, blá blá blá. Ele bufou de raiva, grandes baforadas de vapor e enxofre saindo de suas narinas. Apertou bem os olhos amarelos e fendados buscando alguma falha nesse círculo idiota que o prendia. Raramente essa espécie desprezível e inferior sabia fazer um círculo de proteção decente.

Nem prestava atenção no que o líder do ritual falava quando conseguiu achar o ponto falho, tinham esquecido de cortar o símbolo da esquerda para a direita, fizeram o contrário. Erro primário… Que pena, não é? Sorriu com gosto, mostrando todos os dentes agudos e crispando as garras.

Os gritos de terror dos cultistas ecoaram pelo porão antigo quando os cascos dele tocaram o lado exterior do círculo precário riscado com giz e algo melequento no chão. Nem queria pensar no tipo de nojeira que os humanos usavam. E começou a se divertir com as expressões débeis e hilárias de medo e desespero que os humanos faziam. Retalhava e mordia — carne, ossos, sangue, se espalhavam pelo chão e paredes, respingos o molhavam.

“Isso é para aprenderem a não me invocar nos meus dias de folga, idiotas!”

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Elisa Guimarães

Revisora, preparadora de texto, editora, tradutora freelancer, mãe de uma criaturinha fofa, esposa de um artista talentoso e ávida leitora.