A luz afugenta as sombras

Elisa Guimarães
6 min readAug 2, 2020

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Era muito pequena para se lembrar dos detalhes, mas sabia que uma hora estava dormindo confortavelmente na cama que dividia com sua irmã — as duas enroladas em suas mantas quentinhas, as bonecas macias em seus braços. E agora estava sendo carregada por seu pai. Ele a abraçava apertado contra seu peito. O coração dele acelerado, a respiração rasa. Ele estava com medo? Medo! Por que papai estaria com medo?

Mesmo no ambiente escuro da noite, focos de incêndio era distinguíveis contra o céu estrelado. A noite sem lua, limpa e gentil, ficava turva por grandes nuvens de fumaça. O cheiro a fazia tossir e seus olhos enchiam-se de água. Tentou falar, mas o pai a silenciou rapidamente com um sibilo de ar soprado pelos lábios. Por todos os lados as pessoas pareciam correr apavoradas. Alguns dos guardas, armados com arcos e espadas, corriam na direção oposta da que iam — em direção à fumaça, ao invés de sair dela.

Por que eles fugiam no meio da noite? Onde estava sua mãe? E sua irmã? Por mais que se remexesse nos braços do pai, não conseguia vê-las.

Sentiu o abraço do pai afrouxar um pouco, e algo pegajoso escorrer e molhar sua camisola. Já não iam mais tão rápido. Muitas pessoas gritavam ao seu redor. Tudo se passava muito rápido e confuso. Ouvia vozes doces e melodiosas, como é natural para aqueles de seu povo. Alguns rosnados guturais e urros estranhos ecoavam pela noite.

Ela sentiu o calafrio subir por sua espinha, como mãos geladas acariciando seus ossos por dentro. O ar da noite esfriou. E mais gritos de pânico e desespero foram ouvidos. Sons enjoativos de metal batendo e ossos quebrando.

E seu pai estava cada vez mais devagar, o abraço ao redor de seu corpo a cada momento mais frouxo. O que a deixava ainda mais nervosa, agarrando-se a ele com toda a força, apertando os olhos para deixá-los bem fechados.

Eles estavam se aproximando, quem quer que “eles” fossem. Não conseguia mais ouvir os sons melodiosos das vozes falando rapidamente. Seus ouvidos estavam surdos para tudo que não fossem gritos e passos torpes ao seu redor.

Seu pai caiu de joelhos. E seus braços falharam em segurá-la. Ela sentiu o chão duro e úmido direto contra suas costas.

- Ellora, vá! Vá, meu amor, e não olhe para trás.

- Eu tenho medo, papai. Venha comigo! Onde está mamãe? Cadê Garaele?

- Ouça, querida. Siga naquela direção — apontou com a mão trêmula, e cheia de sangue pingando. — Continue. Não pare! Eu te amo para sempre!

Dizendo isso, o elfo pegou uma das flechas da aljava que mantinha atada firmemente à cintura e encaixou na corda do arco que levava no ombro ensanguentado.

- Vá, Ellora! E não olhe para trás!

Com os olhos queimando da fumaça e turvos pelas lágrimas, foi se afastando e olhou para o pai pela última vez, quando a primeira flecha deixou o arco sibilando no ar em sua trilha mortal. Ainda pôde ouvir o som áspero daquele idioma gutural e cheio de dentes.

Respirou fundo uma vez, duas vezes. Talvez o pior já tivesse passado. Quem sabe as flechas certeiras de seu pai tinham derrotado o inimigo que os aterrorizava.

Quando estava a ponto de se voltar, ela ouviu. Um som visceral, um urro de dor profundo, saindo diretamente da alma do elfo moribundo. Um grito de desespero, pedindo clemência. Era a voz de seu pai. Virou-se e distinguiu a silhueta dele, ainda de joelhos no chão; quando algo se avolumou sobre ele abocanhou sua garganta. O barulho que os dentes fizeram ao rasgar a carne e encontrar os ossos do pescoço. Gorgolejos sangrentos, borbulhantes e um silvo escapou da laringe estraçalhada do elfo que tinha os últimos espasmos, tentando inutilmente levar o ar para os pulmões inundados de sangue.

Ellora então correu aos tropeços, seguindo na direção apontada pelo pai. Correu até as pernas ameaçarem ceder sob seu peso e os pulmões queimarem. Correu sem fazer um único som naquela floresta cheia de gritos, urros e gorgolejos de morte. Embalada pelo seu coração que ribombava nos ouvidos, o terror à espreita em cada sombra.

Puxava o ar com dificuldade. Mantinha os ouvidos atentos, captando apenas de relance o festim de sangue e desespero que se desenrolava ao seu redor. Corria o mais rápido que suas pernas curtas eram capazes de levá-la, se sobressaltando a cada estalo que percebia. O tempo não corria mais em minutos ou horas, agora era medido em gritos desesperados e urros de júbilo. A distância não era medida em passos ou metros, mas em marcos. “Só mais até aquela árvore. Agora só mais até aquela lança no chão”, racionalizava a menina para não sucumbir ao pânico.

Até que chegou no limite de suas forças e não conseguia dar mais passo sequer. Podia ouvi-los se aproximando, o cheiro acre de sangue se espalhando naquele lugar. O som de garras arranhando as árvores. Estavam farejando!

Agoniada, os olhos arregalados de medo, pôs-se a olhar ao seu redor, buscando um refúgio daquele pesadelo sádico. Foi quando notou um velho carvalho, com raízes altas, cobertas de folhas e musgo. Sem tempo para pensar, Ellora se lançou em direção à árvore, cavando um buraco entre as camadas de folhas frescas e antigas. Enfiou-se como uma toupeira, com as costas parcialmente apoiadas em uma das raízes e lá ficou.

Não sabe se foram minutos ou horas. Imóvel, sem nem mesmo ousar respirar mais alto. Os sons embotados pelas camadas de solo e folhas. Fechada no desespero daquela noite, revivendo cada momento terrível do ataque e da fuga. Queria chorar, mas não ousaria fazer um ruído sequer.

Essa noite foi terrível, com aquelas criaturas de feições indistintas, camufladas nas sombras das chamas e na fumaça. A escuridão que elas portavam e a ameaçava engolir tudo e todos. Não havia luz, não havia alegria. Só trevas, dor e agonia. Gritos e sangue. Só o vazio em sua alma despedaçada. Os dedos gélidos do medo fechando o aperto de aço em seu jovem coração. O frio e a umidade a faziam tremer.

Foi quando viu pela primeira vez os raios dourados do sol infiltrando-se pelas folhas que a cobriam. Apurou os ouvidos e apenas os pássaros ralhavam um com o outro.

Era dia!

E com o calor do dia e as promessas de luz, ela tomou coragem e saiu de seu esconderijo. Agora podia ver melhor. Não ousava mais olhar para trás, mas sabia que caminho seguiria. Veria o céu mais uma vez e o sol em toda sua glória luminosa. Assim como dia surgiu depois de uma noite de horror, a luz da esperança surgia no coração da jovem elfa de cabelos prateados.

*****

- Ellora? Ellora? — perguntou Cal com a voz meio arrastada.

O som da voz de Calrisian, seu charmoso amigo de muitas habilidades e sorriso fácil, chamavam-na de volta para o presente. Logo o som animado da cantoria e das conversas enchia o ambiente. A luz de tochas, clepsidras e uma bela lareira iluminava o salão amplo da taverna. Os rapazes e moças que trabalhavam na taverna passavam ocupados, levando travessas com carnes e cozidos cheirosos e bebidas para todos os presentes.

Todos estavam muito animados e felizes, festejando com vontade os forasteiros estranhos os terem livrado de um bando de rufiões escravagistas que atormentavam a pequena cidade. Eles haviam conseguido acabar com a escuridão no semblante daquelas pessoas simples. Tinham trazido a esperança de volta ao coração dos aldeões. A elfa tocou o símbolo de madeira polida e envernizada em dourado que pendia em seu peito, agradecida por ter sido capaz de ser o veículo da esperança daquela gente.

Não só ela. Olhou ao seu redor, no meio dos rostos sorridentes e das canecas erguidas identificou facilmente os chifres lustrosos de Danna, que entoava uma canção com o talento divino reservado aos ébrios. Não conseguiu ver Nilo, como era de se esperar, sempre enfurnado em um canto com seus livros, um comentário divertido e mordaz pronto para ganhar vida em seus lábios. E havia Cal, bem à sua frente, que a fazia corar ao fitar seus olhos negros e gentis, tão cheios de promessas. Promessas que um dia seriam cumpridas?

- Ah? O quê? — respondeu a elfa limpando a garganta e entornando o resto de sua cerveja.

- Eu perguntei se você se lembra quando vocês, você e Garaele, deixaram seu vilarejo.

- Não muito bem. Eu era muito jovem, uma criança. E você, Cal, como conheceu Nilo? — falou com uma suavidade que não sentia e um leve sorriso nos lábios. “Nunca mais temeria a noite. Nunca mais…”, pensou com severidade enquanto observava seu belo amigo se embaraçar nas palavras embriagadas.

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Elisa Guimarães

Revisora, preparadora de texto, editora, tradutora freelancer, mãe de uma criaturinha fofa, esposa de um artista talentoso e ávida leitora.